No fim de 2015, o Brasil presenciou um cenário preocupante: o aumento exponencial de casos de microcefalia em recém-nascidos. A condição física, que até então não passava dos 200 diagnósticos por ano, em 22 de dezembro de 2015 já batia 2.782 casos e 40 mortes.
Seis anos depois, as crianças com microcefalia merecem atenção, inclusive dentro da odontologia, enquanto pacientes com necessidades especiais. A condição tem manifestações bucais específicas, assim como o atendimento, que deve seguir algumas orientações para garantir conforto, tranquilidade e humanização.
Neste artigo, iremos entender melhor o caso e compreender como deve ser feito o atendimento para pacientes com microcefalia, de forma humanizada e ética.
A microcefalia no Brasil
Se puxarmos um pouco pela memória, rapidamente vamos nos lembrar das alarmantes notícias sobre microcefalia que marcavam presença constantemente em manchetes de jornais e geravam preocupações, especialmente para mulheres que estavam gestantes naquele período.
De acordo com o Boletim Epidemiológico publicado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde, a primeira notificação que despertou sinal de alerta para a microcefalia aconteceu em 22 de outubro de 2015, quando o Estado de Pernambuco comunicou o órgão responsável sobre o aumento do distúrbio.
Em novembro daquele ano, a situação passou a ser considerada Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) e, em fevereiro de 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) rotulou o caso como Emergência em Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII).
Segundo o artigo “Microcefalia no Brasil: prevalência e caracterização dos casos a partir do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos”, a maioria dos casos foi notificada no Nordeste, especificamente em Pernambuco, Sergipe e Paraíba, seguida pela região Centro-Oeste.
A pesquisa também consta que os maiores coeficientes de prevalência de microcefalia foram observados em recém-nascidos com condições gerais insatisfatórias: prematuro, baixo peso ao nascer e Índice de Apgar <4 no 1º e 5º minuto após o nascimento.
Microcefalia congênita: o que é?
A microcefalia faz parte das anomalias congênitas e a etiologia pode ser um tanto quanto complexa, como explica o artigo “Microcefalia no Brasil”. As causas são multifatoriais, como anomalias cromossômicas (como Síndrome de Down), exposição a teratógenos ambientais, doenças metabólicas, doenças maternas durante a gestação e infecções perinatais maternas, como zika vírus.
Pode ser classificada como primária, já que faz parte daquelas já constatadas ao nascer, como também pode ser secundária e surgir apenas após esse período, como em alguns casos de crianças com microcefalia adquirida.
De acordo com a OMS, a microcefalia é caracterizada por um perímetro cefálico inferior a dois desvios-padrões (DP), que podemos entender como dois DP abaixo do padrão para faixa etária, idade gestacional e sexo.
A anomalia não só interfere no tamanho da cabeça, como também proporciona diferentes graus de deficiência intelectual, embora exista uma pequena parcela de crianças que pode não apresentar qualquer tipo de atraso no desenvolvimento.
A microcefalia não tem cura, entretanto, o paciente pode receber acompanhamento multidisciplinar para desenvolver habilidades e ter qualidade de vida melhor.
Transmissão por zika vírus
Uma das causas de nascimento de bebês com microcefalia congênita é a transmissão do zika vírus de forma vertical, ou seja, de mãe para filho durante a gestação. Entretanto, pode haver casos em que a contaminação não aconteça (ainda não há respostas concretas para explicar essa ocorrência).
Um ponto importante é que casos nos quais existe a transmissão vertical e os bebês demonstram a anomalia ao nascer são definidos como síndrome ou microcefalia congênita do zika vírus. Portanto, qualquer episódio da condição que surge após o período perinatal não se encaixa dentro desse conceito.
Além do perímetro cefálico menor, a criança com microcefalia pode apresentar artrogripose (condições de limitações congênitas dos movimentos das articulações, que podem ser deformações das mãos, punhos etc.), alterações neurológicas, problemas auditivos e oculares.
Sequelas da microcefalia
Crianças com microcefalia também têm sequelas associadas e, para o profissional de odontologia, é importante ter conhecimento sobre quais são esses episódios, já que podem intervir e modificar a forma de atender o paciente.
Entre elas, temos:
- convulsões (muito comuns)
- atraso mental e déficit intelectual
- hiperatividade
- complicações respiratórias
- rigidez muscular
- epilepsia
- paralisia
- autismo
Principais manifestações odontológicas
Além das sequelas que afetam as habilidades cognitivas e intelectuais, as crianças com microcefalia sofrem com algumas manifestações bucais específicas e, portanto, cabe ao cirurgião-dentista ter conhecimentos aprofundados sobre essa condição para atender o paciente de forma cuidadosa e ética.
O artigo “Zika Vírus e o futuro da odontologia no atendimento a pacientes com microcefalia” explica que pacientes com microcefalia são mais vulneráveis aos riscos de doenças bucais. Isso porque as dificuldades em desenvolver a parte motora faz com que eles não tenham plena habilidade para realizar a higiene bucal diária, tornando-se totalmente dependentes dos outros.
Ainda de acordo com a pesquisa, as crianças com microcefalia, por terem a cabeça menor, tendem a ter dismorfismo facial, que são:
- braquicefalia
- hipoplasia da face média
- face plana
- lábio fino
- testa estreita e plana
- região malar plana
- nariz amplo e curto
- pescoço curto com pele enrugada
- hipertelorismo
- sobrancelhas altas
- dobras epicânticas do lado direito
- ponte nasal e terço médio achatado
- plagiocefalia
- crânio em forma de caixa
- fontanela anterior aberta
- testa proeminente
- nariz ponta nasal bulbosa
- orelhas pequenas e protuberantes
Essas condições podem contribuir para o surgimento de apinhamento dentário, já que o maxilar é menor e esses pacientes têm o desenvolvimento de macroglossia secundária, que causa afastamento dos dentes e pode gerar maloclusão e hábitos bucais deletérios.
O estudo também explica que, quando esse quadro está associado à hipotonicidade da língua, os lábios ficam constantemente banhados em saliva, o que pode causar queilite angular, fissuras nos cantos labiais, irritações e, consequentemente, infecções.
Há pacientes que podem apresentar palato estreito e profundo, e quando houver macroglossia e protrusão de língua ocorre diminuição do volume da cavidade oral e, por conseguinte, prejudica habilidades de fala e mastigação.
Outras principais ocorrências odontológicas são doenças periodontais, cárie dentária, micrognatia, atraso na erupção dentária, disfagia, bruxismo e traumatismo bucal.
Anamnese e humanização durante o atendimento
A anamnese, documento fundamental para estruturar um atendimento, deve ser feita de forma muito atenta e o mais humanizada possível. Isso significa que, ao receber os pais da criança com microcefalia no consultório, é necessário saber ouvir e ter respeito pela história da família, dores e dificuldades.
Nunca minimize a situação e não faça julgamentos sobre as pessoas, pois isso pode fazer com que a família não se sinta à vontade. Ser dentista, muito mais do que ter conhecimento técnico, é proporcionar condições para que as pessoas não sintam constrangimento, e sim conforto para continuar os tratamentos.
A exemplo da necessidade da humanização, há estudos realizados na Bahia que constatam que mães de crianças com microcefalia, que representam 90% dos cuidadores responsáveis, apresentam, em algum grau, depressão.
Ao realizar a anamnese, desapegue-se um pouco dos roteiros já prontos e preste atenção na criança, nos pais, nos relatos e sinais. Entender o histórico médico e odontológico também é definitivo para estruturar o tratamento.
Nesse momento, o cirurgião-dentista deve investigar limitações físicas e mentais, assim como descobrir qual a situação atual da saúde do paciente.
Também é necessário questionar o responsável sobre outros distúrbios associados. Como já citamos, crianças com microcefalia podem ter epilepsia, convulsões e outras condições que podem afetar o momento do atendimento.
Exame físico
Durante a anamnese, o cirurgião-dentista pode fazer um exame físico na criança com microcefalia para analisar as características da face e do corpo, a fim de compreender aspectos da cavidade bucal.
Portanto, o profissional de odontologia pode começar por uma inspeção intraoral e extraoral, fazer uma palpação dos tecidos moles e aplicar uma análise de percussão e olfação. Esse olhar cuidadoso e atento pode ajudar a encontrar características essenciais para a anamnese e que fazem a diferença no diagnóstico bucal.
Atendimento à criança com microcefalia
Além do conhecimento das doenças bucais comuns e de como preparar a anamnese, é preciso saber atender. Novamente, voltamos a falar sobre humanização, que muito diz sobre saber respeitar os limites de cada um e as suas características.
O estudo “Microcefalia congênita pelo Zika vírus: cuidados odontológicos” explica que os atendimentos devem ser planejados de forma que tudo aconteça um pouco mais rápido, para que o paciente não sinta fadiga muscular ou passe por situações de estresse.
Ao deitar o paciente na cadeira, sempre ajuste-a para que fique confortável e ofereça menos risco durante o procedimento, como a deglutição. Para evitar essa situação, o ideal é deixar o encosto levemente inclinado.
Durante o atendimento, o paciente pode ter alguns movimentos involuntários. Para evitar que isso ocorra, peça a autorização dos pais para utilizar a técnica de estabilização protetora, já comum na odontopediatria. O objetivo é manter a segurança e evitar qualquer movimento brusco que possa causar machucados ou algum perigo.
Nas mandíbulas, é recomendado o uso do abridor de boca e colar cervical, que impede muitos movimentos.
Aprofundar os conhecimentos em atendimentos de pacientes com necessidades especiais é fundamental para que cirurgiões-dentistas possam receber crianças com microcefalia no consultório e garantir uma saúde bucal que auxilie o desenvolvimento de habilidades básicas.
Seguindo essas dicas, você proporciona um atendimento confortável e ético para crianças com microcefalia e expande as suas oportunidades de atuar no ramo de pacientes com necessidades especiais.
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